Envelhecimento e a Espiritualidade - SOM DO MEU TEMPO

Destaque

16.11.21

Envelhecimento e a Espiritualidade

 

Reflexões sobre Envelhecimento e Espiritualidade

Tempo de Leitura: 10 minutos

A divulgação em mídias abertas de resultados que indicam que a espiritualidade e a religiosidade apresentam impacto positivo na prevenção e recuperação de muitas doenças e no processo de envelhecimento tem chamado a atenção da sociedade.


Os temas envelhecimento, espiritualidade, saúde mental e qualidade de vida têm sido objeto de nossos estudos e pesquisas na área da Gerontologia Social, e parte de uma busca pessoal, ao longo dos anos.

Notamos que a preocupação com a saúde e a qualidade de vida no envelhecimento e longevidade avançada, com aumento de nonagenários e centenários, tem sido tema de estudos científicos, gerando novos programas de atenção a este público, e como tema em diferentes eventos dirigidos a idosos e/ou profissionais. Este interesse é reforçado pela divulgação em mídias abertas de resultados que indicam que a espiritualidade e a religiosidade apresentam impacto positivo na prevenção e recuperação de muitas doenças e no processo de envelhecimento.

A recente premiação do físico e astrônomo brasileiro Marcelo Gleiser, há 20 anos professor de Física e Astronomia no Dartmouth College, nos Estados Unidos, com o Templenton – considerado o ‘Oscar’ da Espiritualidade – trouxe novo foco para questão do ‘poder’ inquestionável da ciência, em diferentes estudos que envolvem a vida e as necessidades humanas, e sugere a pergunta:

O que sabemos sobre os mistérios do Universo?

Nas suas declarações, ao receber o prêmio, Gleiser afirma que “a ciência é o caminho para entendermos o mistério da existência humana […] nossa metodologia mais poderosa para compreender o mundo natural. Mas, por outro lado, a ciência tem limite e oferece só um tipo de explicação”. Segundo ele, o que se vê é apenas uma parte da realidade, existe um ‘mistério’ que é profundamente espiritual, e a ciência e espiritualidade são dois lados de uma mesma moeda.  Afirma:

Eu tenho a humildade de aceitar o fato de que a gente não sabe tudo. Então, eu mantenho a mente aberta para surpresas e, obviamente, depende do que você chama de Deus, porque tem gente que acha que Deus é a natureza, então, se Deus é a natureza, eu sou uma pessoa religiosa.”

Os que professam uma religião organizada podem contestar suas palavras, mas devemos considerar que, por mais forte que seja a fé absoluta em um Deus, muitos sentem que existe algo de inapreensível, ‘imponderável’, que não podemos conhecer, compreender e alcançar, como afirmou em depoimento um padre católico em relato de pesquisa de campo, parte de meus estudos na área.

Em conversa recente, uma candidata a pós-doutorado perguntou:

Mas na fase do envelhecimento é natural uma aproximação com a fé, com Deus, não?

Resposta difícil. Observamos que alguns mantêm a fé ao longo da vida, como um ‘porto seguro’, seja por práticas espirituais e/ou religiosas, e como apoio e consolo devido a perdas de pessoas próximas, doenças, fragilidades físicas e emocionais, problemas familiares, mágoas acumuladas ao longo da vida, entre outras questões. No entanto, existem os que se revoltam e consideram que estão sendo ‘punidos’ ao serem acometidos por diferentes sofrimentos, e até ‘brigam’ com o deus de suas crenças, e perguntam:

‘O que eu fiz, para merecer isto?’ Será que existe um ‘remédio’ eficaz para questões de sentido?

Será que as questões surgem apenas na maturidade e nos anos de velhice? A ciência teria uma resposta?

Aqui vale um alerta: quando abordamos o tema da velhice sempre utilizamos o plural – velhices – pois cada indivíduo é único e, assim, vive e envelhece ao seu ‘modo’ – passa por experiências ao longo da vida e as interpreta segundo os recursos próprios, ou sua falta. A questão de sentido: por que eu? – ante o sofrimento, a dor, a doença, a morte não nos acompanha ao longo da vida?

Neste ponto vale observar que essa diversidade dos modos de envelhecer é também impactada pelos aspectos socioeconômicos, de escolaridade e gênero. Assim, podemos considerar o processo de vida – o longeviver – como dinâmico e influenciado não só pela genética, mas também pelo lugar de origem e o lugar de destino, as mudanças que acontecem ao longo da vida, e também pelo grau de escolaridade, ao gênero a que pertence, à formação profissional e o emprego, tendo como panorama a convivência nos grupos comunitários de pertença – família, escola, amigos do trabalho, igreja, e outros.

Ao pensar os muitos modos de viver e envelhecer é interessante o exercício, que podemos fazer – rever a trajetória da nossa família, desde a origem até o momento atual – a raiz é a mesma mas, quantas mudanças observamos com o tempo – alguns progrediram, outros estagnaram; como cada um se constituiu como indivíduo – formou uma família e segue em frente, apesar de dificuldades normais a todos; os que brigaram e se afastaram, ou não conseguiram estabilidade financeira e emocional, e aqueles que desistiram de tudo.

A história pessoal e familiar é uma boa amostra da diversidade de ‘vidas’ e ‘velhices’ e, neste momento, vale refletir: Quem cuida? Quem é cuidado? Quem foi abandonado? Quando pensamos em nossa ‘saga familiar’, buscando aprender seu significado, não ‘remoendo’ sentimentos negativos, mas buscando sentidos, podemos vislumbrar mais do que imaginado. Neste ponto é inevitável a pergunta: e eu? Em que ponto estou? Como me situo? O que penso e desejo? O que sinto? Qual o sentido da minha vida?

Nós, que estudamos e pesquisamos, não prescindimos de ouvir atentamente os idosos e familiares dos quais nos aproximamos. Neles encontramos as experiências da ‘vida vivida’, que nos desvelam e ensinam tanto quanto os textos teóricos, complementando-os. Na escuta sensível, seja no contato direto com idosos, seja na formação de profissionais ou na pesquisa, é comum ouvirmos histórias de perdas e frustrações, mas também de superação e, nestes momentos, sempre aparece a força da fé e suas práticas, como possibilidade de superação e sentido. Vale aqui apontar a definição que se dá de religiosidade e espiritualidade.

O lugar da religiosidade e espiritualidade

A religiosidade se caracteriza pela adoção de comportamentos e crenças associados a uma religião instituída, com preceitos e ritos bem estabelecidos em um livro sagrado, sem questionamentos. A espiritualidade tem um sentido amplo que envolve diferentes práticas, e inclui a religiosidade, como reverenciar e agradecer a plenitude da vida, a natureza e seus dons e o esplendor do Universo – esse desconhecido – sem preceitos, dogmas, regras e rituais. Esta é a perspectiva de Marcelo Gleiser, que estudando profundamente o Universo, com os recursos mais sofisticados da ciência, afirma que ela não explica tudo. Persiste o oculto, não decifrável, o mistério. Seria este o lugar da religiosidade e da espiritualidade?

Participamos recentemente, como palestrante, de dois eventos nos temas envelhecimento, espiritualidade e saúde. No primeiro, aberto a idosos e profissionais, o tema envelhecimento e saúde foi abordado em outro módulo, por destacados profissionais da área, e minha intervenção foi no módulo Envelhecimento e Saúde Mental que trazia a questão: Qual a importância da espiritualidade, meditação e propósitos no envelhecimento ativo?(1)

Assim, abordamos a questão central como o Sentido da Vida – em perspectiva antropológica e filosófica – a partir das palavras de Luc Ferry (2000, p. 49) (2), que afirma:

Não só estou mergulhado, desde a origem da minha vida, em um mundo que eu não quis e nem criei, mas, além disso, escapa-me o sentido do meu nascimento e de minha morte. Sem dúvida, posso aprender as condições científicas, analisar o processo de reprodução e envelhecimento das células. Mas nada, na abordagem biológica, por mais pertinente e interessante que seja vai me permitir controlar o milagre da vida e nem a significação da finitude. Há nisso, mais uma vez, uma parte de invisibilidade, de exterioridade ou, se quiserem, de transcendência que prolonga aquela que a razão me impunha descobrir na determinação do passado.”

Como explicar o ‘milagre da vida’? Nem o filósofo, nem o astrônomo tem a resposta. Deixamos aberta a questão: qual o sentido do Universo, e nele da existência humana? O que buscamos? Qual o Sentido da Vida? Pode a meditação, como prática de apaziguamento interno, nos conduzir nesta busca? Qual a influência e benefícios das diferentes práticas espirituais, incluindo as orações e recitativo de mantras, neste processo? Talvez seja esta a questão central que os homens têm buscado responder ao longo dos tempos. Acharemos respostas? Sentidos? Fora de nós, no próprio Universo, ou escondido em nós? Um tesouro a ser buscado e descoberto.

Aberta aos idosos da comunidade, a segunda palestra(3) abordou a articulação entre os temas Longevidade, Saúde e Espiritualidade, com objetivo de esclarecer os significados dos diferentes termos utilizados, ampliar e articular os conhecimentos em busca de uma visão integrada. Iniciamos esclarecendo sobre as muitas denominações, e suas diferenças, usadas ao abordar o tema do envelhecimento populacional:

Envelhecimento – como processo, ciclo de vida do nascimento à morte;

Velhice – período determinado da vida, ampliando com o uso do termo velho, pouco utilizado pela marca excludente e pejorativa que adquiriu socialmente;

Longevidade– os muitos anos de vida após a marca etária legal de 60 anos; Longevidade avançada (4) – período que anuncia as perspectivas de vida com qualidade além dos 85 anos, com crescente número de nonagenários e centenários;

LongeViver(5)– que considera todas as idades da vida como um processo dinâmico nos muito modos de viver e envelhecer.

O tema Saúde foi abordado a partir da definição do conceito da OMS como “estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente ausência de afecções e enfermidades”. Indicamos como muitas pessoas, mesmo com doenças e fragilidade, tem uma percepção subjetiva positiva de sua qualidade de vida. Outras são queixosas e pessimistas, mesmo em condições adequadas a esta fase, o que indica que essa percepção subjetiva, do bem estar e qualidade de vida, deve ser valorizada, buscando outras razões, que não doenças, nesta avaliação e para sugerir e incentivar outros modos de pensar novos caminhos.

A busca do equilíbrio, como sugerido, pode ser considerada uma meta a ser alcançada no processo de envelhecimento, mesmo em condições de saúde e sociais ideais. Muitos estudos indicam que a percepção subjetiva da boa qualidade de vida pode estar ligada à saúde mental e a espiritualidade.

Abordar a diferença tênue entre os significados de religiosidade e espiritualidade, como explicitados acima, é um ponto importante nesse processo reflexivo, aliada às informações trazidas pelas ciências, em pesquisas recentes e referendadas, que demonstram relação positiva entre espiritualidade e religiosidade com a saúde mental, incluindo menor prevalência de depressão e menor tempo de remissão do quadro após a medicação e menor prevalência de ansiedade e suicídio.

Da mesma forma, muitos estudos indicam forte relação da espiritualidade e religiosidade no enfretamento da dor, na estabilização de doenças cardiovasculares e hipertensivas; na recuperação cirúrgica, com impacto também na atividade imunológica e os tratamentos de câncer. Traz assim, de forma geral, o buscado equilíbrio e harmonia, com melhor qualidade de vida e bem estar geral, ao processo de envelhecimento.

Neste processo ficou indicado que a meditação e a oração são práticas valiosas na superação dos momentos de sofrimento físico e psicológico, tanto para o paciente como para seus familiares. Na difícil fase de cuidados paliativos o apoio espiritual e religioso também é fundamental e além de conforto pode auxiliar no processo de perdão interpessoal, superando mágoas e ressentimentos, e o apaziguamento final.

No entanto, alguns estudos e pesquisas, muitos respaldados por relatos orais de idosos, destacam que nem sempre as forças da fé religiosa e espiritual podem ser positivas, e os médicos e outros profissionais de apoio devem estar atentos e preparados para auxiliar nesse momento. Quando a religião adquire feição punitiva, e as doenças são percebidas como castigo – com sofrimentos e medos suplementares aos doentes; ou quando não permite certas intervenções médicas, ela pode gerar mais desconforto e conflitos entre pacientes, médicos e familiares.

Ressaltamos a importância do preparo das equipes de cuidados para o envelhecimento, especialmente nas fases mais agudas de sofrimento e final de vida, pois se constata, nos estudos e práticas, que grande número de profissionais foi preparado para salvar vidas, mas não para oferecer apoio no momento no qual o respeito, o carinho e a preservação da dignidade é o último ato de amor ao próximo(6).

Nos dois eventos, com grande público, ficou clara a pertinência do tema e a busca de equilíbrio e harmonia no envelhecimento, com sentimentos de esperança e solidariedade. Como afirma Gleiser, a ciência não responde tudo, existe o ‘mistério’ do Universo que nos desafia e, além dele, o nosso próprio desafio de descobrir o sentido na nossa vida neste lugar, ainda misterioso.

Finalizando, trazemos as palavras de uma idosa participante de pesquisa no tema, realizada por nós (7), que oferece sua reflexão pessoal:

Assim, aos 82 anos, a busca de sentidos para a vida que sempre me inquietou […] se confunde com a busca de Deus. Adquiri, apesar das perdas da velhice, certa serenidade, sabendo que o sentido pleno da vida só se revela quando ela acaba, mas está em construção no dia a dia da história vivida.”

A busca de sentido, na ciência e além dela, poderia ser o caminho para viver e longeviver melhor, de modo mais harmônico e integrado, como parte de uma natureza maior que nós, além de nós?

Um desafio que permanece e convida à reflexão:

Devemos buscar nosso caminho original e único […] descobrindo a noção do belo em relação ao mundo material, mas também, como ser humano, continuar e encantar-se e explorar o que existe no nosso interior, exterior e para além de nós próprios”. (BREITBART, 2005, p.15) (8).

Notas

(1) III Simpósio USP – Rumo ao Envelhecimento Ativo. Organizado pelo Dr. Egídio Dórea. São Paulo em 16/05/2019.

(2) Ferry, L. (2010). O Homem – Deus ou O sentido da vida. Rio de Janeiro, DIFEL.

(3) XV Fórum Municipal da Melhor Idade. Envelhecimento, Espiritualidade e Saúde. Organizado pelos Srs Hiroyuki Minammi e Marcio Roberto Barreira na Câmara Municipal de São Bernardo do Campo, em 31/05/2019.

(4) Côrte, B; Brandão, V.(2018). Longevidade Avançada – A reinvenção do tempo. Revista Kairós – Gerontologia, 21(1), 213-241. ISSNe 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil: FACHS/NEPE/PEPGG/PUC-SP. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/kairos/article/view/39523

(5) Brandão, V. (2013).  Viver bem para LongeViver melhor.  REVISTA PORTAL de Divulgação (São Paulo), 34, Ano III, jul. ISSN 2178-3454. www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista

(6) Côrte, B; Lopes, R; Brandão V. (2015). Longevidade, Saúde e Espiritualidade. In Cerveny, C.M.O. Manual de Longevidade: guia para a melhoria da qualidade de vida dos idosos. Curitiba: Ed. Juruá.

(7) Brandão, V. (2011). Longevidade e Espiritualidade. Narrativas Autobiográficas. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

(8) Breitbart, W. (2005). Deus e a Ciência: você pode acreditar nos dois? Revista Essencial, ago-set: 13-15.

Vera Brandão

Pedagoga (USP); Mestre e Doutora em Ciências Sociais (PUCSP); com Pós.doc em Gerontologia Social pela PUCSP. Docente. Pesquisadora do Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE-PUC/SP). Editora da Revista Longeviver (https://revistalongeviver.com.br) e Coordenadora Pedagógica do Espaço Longeviver. E-mail: veratordinobrandao@hotmail.com

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